O sonetista
Crônica de Ana Lúcia Franco
CRÔNICAPRIMEIRA EDIÇÃO
8/25/20253 min read


Eu não tinha nem dez anos, havia uma apresentação na escola e tínhamos que criar um texto para ser declamado, acho que dia dos pais. Eu escrevi um soneto que deixou a professora estarrecida. Não digo para me gabar, eu não sabia o que estava fazendo. Meus pais foram chamados à escola, afinal eu não poderia ter escrito aquilo. Foi tão assustador para mim, que até hoje não gosto de escrever sonetos.
O primeiro soneto que li foi de Cruz e Souza e eu já estava na adolescência. Li tudo que podia de Cruz e Souza na época, vida e obra. Para mim, sonetista melhor que Augusto dos Anjos e Vinícius de Moraes. Aprecio sonetos, mas não gosto de escrevê-los. Não gosto de interromper o fluxo de uma poema para pensar com que palavra rimar e dizer o que não quero dizer só para rimar. Às vezes rola. Não investi em fazer sonetos, acho que tudo é um exercício. Prefiro a liberdade formal. Mas sonetos sempre me encontram e me encantam. Envoltos em uma aura misteriosa.
Eu estava no antigo Orkut, no Bar do Escritor. O ano era 2006. Lá postávamos coisas que escrevíamos e os outros comentavam sobre. Antes dos blogs, antes do facebook. Eu gostava de entrar, mais como espectadora, raramente postava algo.
Um dia, de repente, li um soneto que me arrepiou. Lá, no Bar do Escritor. Não era de Cruz de Souza ou de Augusto dos Anjos. Era de um rapaz chamado Elizeu de Lima. Quem era esse rapaz? Os sonetos mais incríveis que já li. Aí postei um poema meu também para ver se chamava a atenção de Elizeu. Chamei.
Em pouco tempo estávamos conversando no ICQ. Foi um encontro incrível. Elizeu, além de um exímio poeta, era cartunista. Nasceu em Pernambuco, vivia em São Paulo. O que ele escrevia tinha o dom de me alterar. Algo quântico. Eram horas de conversas. Parece que nos conhecíamos há vinte mil anos. Ele me assustava dizendo que saía de seu corpo à noite e vinha velar meu sono. Para com isso. Pensei em cortar aquela conversa, mas não dava. Estávamos viciados um no outro. Era um lance de vício mesmo. Tínhamos que nos ler periodicamente.
Irei até Brasília, te visitar. Não venha, Elizeu. Não vamos passar daqui, do ICQ.
Por que Elizeu não estava na faculdade, não cursava letras ou artes? Tinha que trabalhar duro para se sustentar. Trabalhava com algo nada a ver, que lhe sugava a energia, lhe sugava o tempo. Por que não uma dedicação exclusiva à arte? Por que Elizeu escolheu aquela vida repleta de privações e sacrifícios?
Sim, foi escolha dele, se ele quisesse modificar a situação, modificaria. Mas ele queria modificá-la? Qual pecado cometestes, Elizeu? Para te impor uma pena tão cruel. Elizeu tinha pouco mais de vinte anos, naquela época. Não cometera pecado algum. Já tinha feito muito de ter saído de Pernambuco, do agreste, onde pereceria tal uma flor de cacto. E não teria nem internet nem computador e talvez desconhecesse que era poeta, era cartunista.
Ana, eu sei quem eu sou. Saí de Pernambuco para tentar a vida em São Paulo e ser quem eu sou. Ah, é? Enquanto isso, esse batente todo? Por que não alivia e te dedica mais às artes? Arte não enche barriga, Ana. Ah, não me venha com isso. Pense na arte e não em encher barriga. Viva pela arte e confie.
A estúpida seria eu, então? Não sei.
Se saiu de Pernambuco para se tornar escritor e cartunista, porque se afastava cada vez mais para servir a um sistema estúpido. Sabes, ao menos, quem estás enriquecendo enquanto te empobreces cada vez mais? Não está certo, preste atenção Elizeu. O que fazes contigo? Te punes, te punes. Como enquadras tua vida num cubículo de necessidade e todo teu brilho é sugado pelo cotidiano. Não está lendo mais. Estás, cansado, percebes? Para qual inferno estás indo, que demônios te devoram. Senta-te, agora, e escreva a história de tua vida, não confies no tempo. Não confies em nada. Escrevas, tu, a tua história. A tua luz te salvará das trevas que te querem. E tu, o que queres?
Para quê vivemos?
Arte: OS AMANTES - Acrílico sobre tela - 100 x 80 cm - Claudio Venturim