O porteiro indiscreto
Crônica Ana Lúcia Franco
OITAVA EDIÇÃOCRÔNICA
12/1/20253 min read
Sempre que passo pela portaria do prédio onde moro, no Rio de Janeiro, se for no período da tarde, determinado porteiro me pergunta onde vou. Sim. Também acho estranho, mas já me acostumei. A primeira vez que ouvi a pergunta fiquei paralisada. Mas como assim? Devo dar satisfação do meu paradeiro a este rapaz? Por que?
Mas não quis ser indelicada. Respondi: “vou logo ali, até a orla, já volto”. Daí em diante, ele sempre me pergunta. Eu sempre me espanto e respondo. Sinto que o intuito dele é me advertir dos perigos do Rio de Janeiro. “Não ande com celular”. “Olhe sempre para os lados”. “Esta cidade não é brincadeira”. Saio com medo, pesada, mas logo passa. Logo me esqueço de que a cidade não é de brincadeira, e não posso andar com o celular. Aliás, nunca vi nada de anormal nas ruas do Rio. Tudo em paz. Adoro fotografar e fotografo. Saco o celular. Nunca aconteceu nada. Nem me lembro das advertências dele.
Algumas pessoas assumem o fardo de serem policiais alheios. Do nada. Mesmo sem ninguém pedir, mesmo sem qualquer obrigação. Fico pensando que devo suscitar um sentido de proteção, deve ser isso. Tenho um jeitinho desamparado, talvez. E ele quer me proteger, me advertir. Propagar o medo? Não, não. Procuro olhar com bons olhos esta atitude dele. De me questionar sobre para onde estou indo. Talvez ele fique muito tempo ali, sentado, sem nada para fazer e queira preencher seu tempo. Tomando conta da vida dos moradores? Seria só comigo este interesse ou ele pergunta a todos os moradores o que vão fazer ao saírem para a rua? Não reparei ainda. Prestarei atenção. Tenho a impressão de que não são todos os moradores a serem fulminados por este tipo de questionamento. Há pessoas que simplesmente se fecham a este tipo de intromissão, sem dizerem palavra. Só jeito. O olhar.
Outro dia, eu disse que ia até a orla tomar uma água de coco. No dia seguinte, ele me disse “você demorou muito na orla, tomando água de coco”. Não é possível, ele está controlando o tempo que fico fora. Respondi que, então, tomei a água de coco e decidi dar uma caminhada até o Forte, parei da estátua do Drumond, tirei umas fotos. Dei um relatório do que fiz. Tão constrangedor. Não queria ser indelicada, mas tudo tem um limite. Devemos dar limites, não dar tanta conversa.
Por outro lado, ter empatia. Afinal, é uma tarefa estafante tomar conta de um edifício. Tanta gente deve fechar a cara para ele. Eu não fecho. Cumprimento, converso. Aí ele se sente no direito de saber para onde vou
Talvez eu não esteja modulando bem esta questão dos limites. Os limites entre o ser simpática e estar vulnerável a intromissões. Não é porque procuro ser simpática que irei tolerar gracinhas ou perguntas impertinentes. E se está me incomodando, deve parar. Mas agora, o que faço? Passo e finjo que não estou escutando a pergunta. Não respondo nada. Pergunto o que ele tem a ver com o local para onde estou indo. O receio de me tornar antipática.
Fato é que os limites deveriam ter sido dados desde o começo. Desde a primeira pergunta. Agora, dar limites soaria arrogância. Ou deixar para lá, não se importar. Quer perguntar, pergunte
Pessoas assim, geralmente, sabem muito bem o que perguntam e para quem perguntam. Se ele tem este interesse em saber para onde vou a ponto de me perguntar, algo em mim suscitou esta atitude. Pior, algo em mim deu a brecha para que as perguntas fossem feitas. Ah, eu sempre fui tão de boa. Por que encasquetei com isso agora? Porque nunca vi este tipo de questionamento. Porteiros são sempre tão discretos. Nem sempre. As coisas mudam. O muito está muito louco.
Já me aconselharam abrir uma ocorrência, falar com a síndica. Ah,não é tão grave. Não me ofende, não é uma cantada. Só é estranho.
Ontem eu voltava para casa, devia ser umas seis da tarde. Não o vi quando saía. Fiz que estava com pressa, mas não escapei da pergunta: “por onde a senhorita andou?”. Parei sem acreditar no que ouvia. Respondi: olha, estive na Cinelândia. Fui ao Centro Cultural da Justiça Federal. Mas antes sentei num banco daqueles para olhar o movimento. Ele ficou lívido. Na Cinelândia? Sim, na Cinelândia. Acho bonita aquela praça e nada me impedirá de sentar ali, adoro praças, ar livre. Ele disse: mas é um lugar muito perigoso. Respondi que não acho e que se acontecesse alguma coisa o problema era meu, que ele não se preocupasse. Boa noite. E saí.
Ah.
Foto: Flickr (perfil José Mario Andrada)