Maria Firmina dos Reis

Quatro poemas da primeira escritora brasileira a publicar textos literários. Excerto da obra: Maria Firmina dos Reis, A escrava (Obras Escolhidas). Metabiblioteca.

OITAVA EDIÇÃOPOEMA

12/1/20254 min read

Uma tarde em Cumã

Aqui minh'alma expande-se, e de amor

Eu sinto transportado o peito meu;

Aqui murmura o vento apaixonado,

Ali sobre uma rocha o mar gemeu.

E sobre a branca areia - mansamente

A onda enfraquecida exausta morre.

Além, na linha azul dos horizontes,

Ligeirinho baixel nas águas corre.

Quanta doce poesia, que me inspira

O mago encanto destas praias nuas

Esta brisa, que afaga os meus cabelos,

Semelha o acento dessas fases tuas.

Aqui se ameigam de meu peito as dores

Menos ardente me goteja o pranto;

Aqui, na lira maviosa e doce

Minha alma trina melodioso canto.

A mente vaga em solidões longínquas,

Pulsa meu peito, e de paixão se exalta;

Delírio vago, sedutor quebranto,

Qual belo íris, meu desejo esmalta.

Vem comigo gozar destas delícias,

Deste amor, que me inspira poesia;

Vem provar-me a ternura de tua alma,

Ao som desta poética harmonia.

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Uns olhos

Vi uns olhos... que olhos tão belos!

Esses olhos têm certo volver,

Que me obrigam a profundo cismar,

Que despertam-me um vago querer.

Esses olhos me calam na alma

Viva chama de ardente paixão:

Esses olhos me geram alegria,

Me desterram pungente aflição.

Esses olhos devera eu ter visto

Há mais tempo — talvez ao nascer:

Esses olhos me falam de amores;

Nesses olhos eu quero viver...

Nesses olhos, eu bebo a existência,

Nesses olhos de doce langor;

Nesses olhos, que fazem solenes,

Meigas juras eternas de amor.

Esses olhos, que dizem n'um'hora,

Num momento, num doce volver,

Tudo aquilo que os lábios nos dizem,

E que os lábios, não sabem dizer;

Esses olhos têm mago condão,

Esses olhos me excitam a viver;

Só por eles eu amo a existência,

Só por eles eu quero morrer.

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A vida é sonho

Oferecida ao Ilmo. Sr. Raimundo Marcos Cordeiro.

Prova de sincera amizade.

A vida é sonho, — que afanoso sonho!

Há nela gozos de mentido amor;

Porém aquilo que nossa alma almeja

É sonho amargo de aflitiva dor!

Fantasma mudo, que impassível foge,

Se mão ousada a estreitá-lo vai;

Sombra ilusória, fugitiva nuvem,

Folha mirrada, que do tronco cai...

Que vale ao triste sonhador poeta

A noite inteira se volver no leito,

Sonhando anelos — segredando um nome,

Que oculta a todos no abrasado peito?!!...

A vida é sonho, que se esvai na campa,

Sonho dorido, truculento fel,

Longa cadeia, que nos cinge a dor,

Vaso enganoso de absintos, e mel

Se é um segredo que su'alma encerra,

Se é um mistério — revelá-lo a quem?

Se é um desejo — quem fartá-lo pode?

Quem chora as mágoas, que o poeta tem?

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confissao

Embalde, te juro, quisera fugir-te,

Negar-te os extremos de ardente paixão;

Embalde, quisera dizer-te: — não sinto

Prender-me à existência profunda afeição.

Embalde! é loucura. Se penso um momento,

Se juro ofendida meus ferros quebrar;

Rebelde meu peito, mais ama querer-te,

Meu peito mais ama de amor delirar.

E as longas vigílias, — e os negros fantasmas,

Que os sonhos povoam, se intento dormir,

Se ameigam aos encantos, que tu me despertas,

Se posso a teu lado venturas fruir.

E as dores no peito dormentes se acalmam.

E eu julgo teu riso credor de um favor;

E eu sinto minhalma de novo exaltar-se,

Rendida aos sublimes mistérios de amor.

Não digas, é crime — que amar-te não sei,

Que fria te nego meus doces extremos...

Eu amo adorar-te melhor do que a vida,

Melhor que a existência que tanto queremos.

Deixara eu de amar-te, quisera um momento,

Que a vida eu deixara também de gozar!

Delírio, ou loucura — sou cega em querer-te,

Sou louca... perdida, só sei te adorar.

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Maria Firmina dos Reis nasceu no dia 11 de março de 1822, ano em que o Brasil se tornava independente de Portugal, em São Luís do Maranhão. Filha de Leonor Felipa dos Reis, escrava alforri-ada e, segundo seu registro de óbito, João Pedro Esteves, homem abastado e sócio do antigo dono de sua mãe. Considerada a primeira escritora negra do Brasil, foi também professora primária, compositora, musicista e criadora da primeira escola de meninas e meninos do país, fundada em Maçaricó, povoado próximo ao município maranhense de Guimarães; as aulas, gratuitas, eram ministradas dentro de um barracão na propriedade de um senhor de engenho. No entanto, a escola mista não chegou a durar três anos em decorrência da insatisfação gerada na cidade.

A escritora cresceu e viveu em meio a uma sociedade elitista, escravocrata e patriarcal. O estado do Maranhão era mais um a expressar seu elitismo por meio do acesso limitado ao ensino.

Na época, só existiam cursos de Medicina e Direito, portanto escritores faziam parte de um grupo extremamente restrito. A maioria eram homens brancos, economicamente privilegiados, com acesso ao estudo das letras e recursos para a publicação de seus trabalhos. Maria Firmina dos Reis viveu a Independência do Brasil em 1822, a promulgação da 1ª Constituição em 1824, a Lei Eusébio de Queiroz de 1850, a Abolição da Escravidão em 1888, a Proclamação da República em 1889, assim como todas as mudanças que surgiram no país e no mundo com a virada do século.

Conheceu a literatura ao mudar-se para a vila de São josé de Guimarães, em 1830. Sua relação com parentes ligados ao meio cultural, como o gramático Sotero dos Reis, somada ao autodidatismo, construíram seu amor pelas letras. Pela via da ficção, Firmina foi a primeira a colocar o negro como sujeito hu. manizado, munido de voz capaz de relatar suas tragedias como instrumento de denúncia a escravidão. pequena, de rosto re. dondo, olhos escuros e cabelos crespos, escreveu sua obra mais conhecida com o pseudônimo de Uma Maranhense. A partir da publicação de Ursula em 1859, apontado como o primeiro romance abolicionista do Brasil, Maria Firmina dos Reis passou a contribuir para a imprensa local com textos e poemas, alem de escrever um conto, uma novela, um livro de poesias e diversas composições musicais. Entre suas principais obras estão Ursula, Cantos à beira-mar, de 1871, e "Hino à liberdade dos escravos", de 1888.

Conta-se que, quando foi tomar posse como a primeira mulher a ser aprovada em um concurso público no Maranhão para o cargo de professora de primário, com pouco mais de 20 anos, Firmina recusou o transporte em uma liteira carregada por es-cravizados, preferindo ir a pé: "Negro não é animal para se andar montado nele". Maria Firmina dos Reis, única mulher dentre os bustos de importantes escritores maranhenses homenageados na Praça do Pantheon, São Luís, morreu no dia 11 de novembro de 1917 aos 95 anos, cega e pobre, na casa de Mariazinha, ex-escravizada e mãe de um de seus filhos de criação.

Por Rodrigo Jorge Ribeiro Neves