Crônica de Ana Paula Tavares

A carta secreta de Anapalavra ou a morte dos poetas, crônica do Livro "um rio preso nas mãos". (Vozes da África, Portuguese Edition) (pp. 22-23). (Function). Kindle Edition.

CRÔNICAQUINTA EDIÇÃO

10/16/20253 min read

Filha:

Depois de ter transferido para ti os instrumentos da escrita (água, carvão e cinzas, pólvora seca e penas) e de ter mesmo ensaiado as mãos e o corpo como suporte há um sentido do continuum que ficou por passar e a complexidade da linguagem destinada a fixar substâncias voláteis como as palavras mas que deixam cicatrizes daquelas que não saram e cujas marcas se adivinham no passar dos dedos. Nossos tempos não são os mesmos embora se encontrem no fluir das histórias a minha mais perto das curandeiras da rua da frente a tua mais aberta ao mundo e dos locais de transmudação das águas, a minha mais a roçar com os dedos os sinais de um tempo longínquo de antepassados e lobos a ultrapassar os sons da vida e a tua mais ensaiada e estudada em torno de uma gramática de amigos que nos ajudam a transportar as feridas. Quero eu dizer, filha, em palavras simples que trago comigo das velhas e dos caminhos, que para mim o tempo já se espessou e a descrição que guardo dele para te passar é já criação e memória passada a pente fino quando não a rede grossa. Preciso que saibas que o meu tempo é mais um “tempo de alma” tantas são as histórias que o sopesam, iluminam e estabelecem as zonas sombras por vezes quase impossíveis de atravessar. O teu tempo ainda é de somas, um ano atrás do outro com noites de riso e a espera. Sei que já há horas terríveis mas que uma esperança violenta e doce atravessa os teus caminhos na densidade da terra o jogo de sombras é mais luz e sinais para começar. Por isso esta carta se manteve secreta tantos anos na ambição desmedida de que os anjos te ajudassem a construir o mapa de afetos e os sítios da cura que não fossem uma mera cartografia da terra que nos cabe com as suas escalas, superfícies lisas e rugosas, nível do mar e montanha. Tinha que ser o verdadeiro mapa do tesouro, aquele que aberto sobre a mesa tivesse ainda o cheiro da tinta mas também os vincos do silêncio e as fórmulas para não sofrer que eu queria colecionar para ti. Sei que abres esta carta quando a morte dos poetas, dos nossos poetas, se torna parte de nós “aquele buraco no peito” de que falava a avó e com o qual convivemos tão mal que só a música tomada em pequenos goles ao longo do dia nos amansa a dor. É que eles partem (é o que dizem as pessoas e eu nem sequer sei se partir é o verbo) de repente e deixam as palavras por aí para nós decifrarmos na língua dos mapas e a única coisa que nos apetece é olhar o abismo e deixar que o coração bata ao ritmo do salto. As vozes estão por aqui e são o eco dos tais segredos que só a poesia consente. Eu ouço as vozes e era delas que te queria falar, minha doce filha, na tentativa de cruzar os fios e não os deixar em novelo e com as pontas por unir. Por isso te deixo a escrita que é tão antiga como os desenhos nas paredes cobertos de musgo e líquenes. Por isso te deixo estas cartas (eu que experimentei a escrita na areia, o mapa e ofereci o corpo às várias escritas com que tentaram ensinar-me a vida) deixo-te cartas porque há um tempo que se cumpre sempre antes de estarmos preparados e nos perfuma de aflição saber que “os mortos não precisam de nós” (como dizia Rilke) mas nós precisamos deles e das insensatas palavras que trabalharam em verso para nos perturbar. Vai filha e não deixes que o teu tempo se cruze demasiadamente com o meu. Acende a candeia, deixa passar a luz no teu caminho, lê os poetas e deixa que a liberdade que escreveram em todas as línguas te seja leito, mapa, a terra e todos os seus nomes.

Tavares, Ana Paula. Um rio preso nas mãos: crônicas (Vozes da África) (Portuguese Edition) (pp. 22-23). (Function). Kindle Edition.

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Ana Paula Ribeiro Tavares (poeta, prosadora e historiadora) nasceu no Lubango, província da Huíla, Sul de Angola, em 30 de Outubro de 1952. Passou parte da sua infância naquela província, onde fez os seus estudos primários e secundários. Obteve o seu bacharelado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Luanda em 1973. Formou-se em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1982, com um Mestrado em Literatura Africana pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1996. Doutorada em Antropologia (Etnografia) pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, com uma tese intitulada 'História, Memoria e Identidade: Estudo sobre as sociedades e Lunda e Cokwe de Angola'. fonte:https://www.elfikurten.com.br/2015/06/ana-paula-tavares.html