Clube da Luta ou o fantasma de Dostoiévski
Crônica Ana Lúcia Franco
CRÔNICASÉTIMA EDIÇÃO
11/19/20254 min read


Se o escritor russo Dostoiévski fosse roteirista de cinema, poderia fazer algo parecido com o Clube do Luta, filme do Diretor David Fincher, estreado em 1999. O filme é baseado no livro homônimo do escritor americano Chuck Palahniuk, de 1996, que pode ter se inspirado em Dostoiévski, não se sabe. O livro tem frases, tipo: “Naquela época, a minha vida parecia completa demais, e talvez tenhamos que quebrar tudo para construir algo melhor em nós mesmos.” Mais Dostoiévski, impossível.
Fato é que entra século, sai século, remanescem questões existenciais que abordam o universo psicológico subjetivo diante da sociedade que abriga o sujeito. A busca de um sentido existencial, a partir da dissolução do que é posto como roteiro de vida. Uma quebra do casulo. Quando algum elemento do roteiro social falha: um divórcio, um desemprego, o falecimento de um ente querido, o cometimento de um crime, etc. E mesmo antes de algo acontecer, há quem sinta um certo incômodo. Afinal, olhados de perto, com lucidez, os papeis sociais são tão efêmeros que parecem irreais.
O que somos além das máscaras sociais e relacionais que nos são impostas? Alguns se questionam, poucos ousam experimentar. Este movimento de quebra do escafandro geralmente ocorre a partir de alguma crise externa.
No caso do filme, Jack (Edward Norton) é um jovem americano com bom emprego numa seguradora. Apático, passivo, monocromático. Mora num apartamento confortável, com diversos ítens de consumo. Desde o móvel adquirido “como algo que lhe definia a personalidade”, ao conjunto de louça fabricada por indianos bons e pacíficos. Tinha tudo que quisesse, materialmente. Nenhuma crise no trabalho, tudo corria bem.
A crise era interna. Iniciou com uma insônia que já perdurava por seis meses. Jack notou que, com insônia, tudo é uma cópia, de uma cópia, de uma cópia. E assim passou a perceber o que lhe cercava. Era refém do consumismo, das corporações: microsoft, Starbucks, etc. Percebeu-se escravo do consumismo instintivo caseiro. Materialmente, tinha tudo, mas não tinha nada. Vazio. Sofria. Procurou ajuda médica e o médico menosprezou seu sofrimento. O médico o aconselhou a participar de encontros de homens com câncer testicular para ver o que era sofrimento
Exatamente o que ele fez. Passou a frequentar um grupo desses de apoio, sem ter qualquer câncer. Logo eram vários grupos diferentes, relacionados a moléstias diferentes. Com isso, experimentava um certo extravasamento emocional e assim recuperou o sono. Era como se morresse todas as noites e todas as noites renascesse. Era escutado, escutava. Mas durou pouco. Logo conheceu Marla, interpretada pela atriz Helena Carter, que apareceu no grupo de apoio a homens com câncer testicular, sendo uma mulher. Vê-la foi como se reconhecesse a própria mentira. Marla era caótica, um ser cansado da sociedade, um espectro esperando ser levado a qualquer momento. Marla era sim um versão de Jack.
Nesse meio tempo, Jack conheceu Tyler Durden, interpretado por Brad Pitty. Um homem que era seu oposto: másculo, esfuziante, colorido. Levava uma vida de incertezas e aquilo parecia excitante. Fora do lugar comum. Tyler era tão sedutor. Brilhava. Conheceram-se numa viagem de avião. Quando chegou em casa da viagem, Jack se deparou com seu apartamento incendiado. Ligou para o recém conhecido, que lhe deu “abrigo”. Tyler morava numa casa caindo aos pedaços. Local que refletia desleixo, sem a a mínima estrutura material. Ali, estranhamente, Jack foi ficando.
Certa ocasião, Tyler chamou Jack para uma luta. Como assim? Logo o “pacífico” Jack? “Como pode se conhecer a si mesmo se nunca entrou numa briga?. Eu não quero morrer sem nenhuma cicatriz”. Foi o argumento de Tyler. Como resistir? Engalfinharam-se. Logo, organizariam um “Clube de Luta”, em que os participantes perdiam a própria identidade para servirem a um ideal coletivo/destrutivo. Começaram a praticar delitos contra o sistema social e econômico. Atentados, bombas, incêndios. Era pauleira.
O que está na sombra de um cidadão obediente? Eu conheço um agressivo enrustido em pessoas que julgam e criticam a agressividade alheia, mesmo aquela agressividade não destrutiva. Necessária para não se tornar um cordeirinho social. Aquele viés primitivo, digamos assim. Todos o temos. E pode ser a partir deste viés que se encontra a energia suficiente para ser alguém no mundo e não mera engrenagem de um sistema. As partes renegadas, nossas, nos adoecem.
O filme pode parecer exagerado, bizarro. A proposta é esta mesmo. Não é para os delicados. Os “adaptados” a um sistema social não raro injusto, que leva a um consumismo irracional. Um sistema que não raro leva ao desequilíbrio mental. Afinal, os desajustados, desequilibrados, alimentam a indústria farmacêutica, que lhes garante a “normalidade”. Que normalidade? Cordeirinhos consumistas. Empregos insatisfatórios para comprarem itens de consumo supérfluos e girar uma sociedade que não resiste ao mínimo de lucidez. Ocorre que tal lucidez é rara. Uma sistema que garante incolumidade: remédios para dor e paliativos a perder de vista. Não querem a nossa dor. Refutam as cicatrizes. Frágil, perdido o sentido da luta, covarde, se é mais facilmente manipulado.
O filme Clube da Luta, atualmente, é um filme cult, estudado e sobre o qual há teses psicológicas rolando pela internet. O desequilíbrio do protagonista é bem mais grave do que exponho aqui. Não quero dar tanto spoiler. Mas só para sentirem: Tyler é um duplo de Jack. Dostoiévski na veia, não é?