Análise Crítica do Livro Versinho Lilás, publicado pela Editora Stella

Pelo Conselho Editorial da Editora Ipê das Letras

QUARTA EDIÇÃOCRÍTICA LITERÁRIA

9/21/20259 min read

A narrativa poética organiza-se em pequenos poemas distribuídos em capítulos que funcionam como constelações temáticas, estabelecendo um fluxo sensorial e reflexivo. Os versos, majoritariamente curtos e livres, abrem mão da pontuação convencional em várias passagens, privilegiando o ritmo natural da fala e do pensamento infantil. A obra configura-se como um caleidoscópio de experiências cotidianas transformadas pelo olhar sensível — ora focando nos jardins e seus pequenos habitantes, ora nas pessoas e seus traços marcantes, ora nas questões sobre o mundo. A progressão estrutural revela um movimento do individual para o coletivo, do interior para o exterior. Nos primeiros capítulos, acompanha-se a menina encantada em suas descobertas, explorando sensações e criando realidades a partir de estímulos simples. Com o tempo, o foco expande, incorporando a interação com a natureza, especialmente no capítulo "Jardins", onde o florescer simboliza o desenvolvimento pessoal: "tanto de mim/em cada jardim/que ouso florescer". Nos capítulos finais, a narrativa amplia-se ainda mais, reunindo um mosaico de personagens que representam diferentes formas de estar no mundo. Os poemas funcionam como quadros vivos e autônomos, que juntos tecem uma tapeçaria unificada pela sensibilidade e pelo encanto. Essa fragmentação, longe de prejudicar a coesão, reflete a própria experiência infantil: descontínua, impressionista, guiada pela curiosidade e pelo fascínio. O último capítulo, com a pergunta "Por que?", retoma o círculo aberto no início da obra, quando um grão de areia deu origem a um universo, sugerindo que o questionamento e a admiração são constantes na trajetória humana. Temas Centrais O tema principal da obra é a valorização da infância como estado de plenitude, curiosidade e receptividade ao mundo. Esse eixo se desdobra em diversas dimensões entrelaçadas ao longo dos poemas. A imaginação criadora aparece como força vital que transforma o comum em extraordinário, como exemplifica o poema sobre o jogo de amarelinha, onde Aninha "com uma mão tocava as nuvens/com a outra pegava no chão". Esse poder de transformar a mente infantil converte jardins em universos, insetos em companheiros de aventura e gestos simples em rituais significativos. A relação com a natureza destaca-se como tema recorrente e fundamental, manifestada nos poemas sobre jardins, pássaros e pequenos insetos. O trânsito entre o humano e o natural aparece poeticamente no trecho: "Parem tudo para o trânsito/das pequenas coisas:/formiguinhas, joaninhas/meros detalhes das texturas/das flores/e tudo que de miúdo/perambula quase invisível". Essa atenção ao minúsculo revela uma ética do olhar, uma inclinação a valorizar o que usualmente passa despercebido. Nos poemas, a natureza não funciona apenas como cenário, mas como participante ativa no processo de descoberta e autoconhecimento. O amadurecimento e a passagem do tempo surgem como temas relevantes, sobretudo nos poemas que apresentam personagens adultos ou evocam o passado. A tensão entre preservar a criança interior e crescer aparece de forma emblemática no poema "Estômago de Avestruz", em que um anjo aconselha Brubru: "guarde essa/Menina, Brubru, para sempre/Dentro de si/Mas não esqueça de crescer:/É para amadurecer que se está/aqui". Esse equilíbrio entre manter o olhar fresco da infância e desenvolver a sabedoria da maturidade permeia toda a obra. A busca pela autenticidade e autoconhecimento constitui outro tema essencial, evidenciado nos poemas sobre Brubru e nas "figurinhas" que retratam diferentes personalidades. A observação de que "A maior qualidade da Brubru é a capacidade de/viver a própria vida/sem se importar/se gostam ou não" reforça a valorização da individualidade e da coragem para ser quem se é. Em contraponto, aparecem personagens que "precisam ser bajulados para se sentir bem", apontando modos distintos de relação consigo e com os outros. A memória afetiva e o vínculo entre gerações também ganham destaque, especialmente nos poemas que evocam figuras adultas ou recordações de lugares como a fazendinha. A brisa associada ao "colo de vó" sugere a transmissão de afeto e segurança entre gerações, enquanto a referência a Maria, que "foi para o céu:/virou um anjo", aborda com delicadeza o tema da morte e da permanência emocional de quem partiu. Por fim, a capacidade de perceber beleza e significado no cotidiano atravessa toda a obra como um convite a um olhar atento e maravilhado. Dos jogos infantis às observações sobre as estações, do movimento das nuvens à dança das borboletas, a narrativa destaca a experiência sensorial imediata como fonte de aprendizado e prazer. Linguagem A linguagem da obra é marcada pela delicadeza e pela precisão imagética, com versos que capturam a essência da experiência infantil sem simplificações ou excessos. O vocabulário, intencionalmente simples, ganha expressividade pela escolha cuidadosa das palavras e pela musicalidade dos versos. Nota-se uma economia verbal que aumenta a força das imagens, como em "tanto de mim/em cada jardim/que ouso florescer", onde cada termo acumula múltiplos sentidos. As figuras de linguagem são abundantes: metáforas que aproximam realidades distintas ("Brisa parecia colo de vó"), personificações que dão vida a elementos naturais ("o sol faz arte"), e comparações que tornam o abstrato tangível ("Marina riscar com/cetro de estrelinha/um nome no ar:/alegria"). Essas expressões não funcionam como simples enfeites, mas como instrumentos essenciais para exprimir percepções e emoções que escapam à linguagem literal. A sonoridade é outro elemento central da poética. Aliterações, assonâncias e rimas internas criam um ritmo suave e instigante, aproximando o texto da tradição oral das cantigas e das brincadeiras infantis. Em poemas como "Brubru, a indecisa", a repetição sonora ("Se vai de saia preta ou se pula uma espoleta/Se come manga rosa ou se fica toda prosa") evoca o balanço da hesitação e a musicalidade das cantigas de roda. A ausência de pontuação em várias passagens contribui para a fluidez e a abertura interpretativa do texto. Os versos curtos, com layout variado em escada ou recuos, sugerem visualmente ritmo e respiração do poema, como no trecho "carrapato que parece coruja/quando é lua cheia../parece besouro quando a lua míngua/e um grão de areia/na lua nova". Essa disposição convida a uma leitura pausada, atenta aos silêncios entre as palavras. O uso de diminutivos ("formiguinhas", "joaninhas", "destrambelhado") não infantiliza o texto, mas cria uma aproximação afetiva com o universo retratado. Embora simples, a linguagem preserva a complexidade da experiência e do pensamento infantil, reconhecendo a dimensão filosófica presente nas perguntas aparentemente triviais das crianças, como no poema final: "Por que o céu é azul/por que a grama é verde/por que tem dia e noite/por que por que por que". Personagens A obra apresenta um conjunto diverso de personagens que funcionam como facetas ou representações de diferentes formas de ser e existir no mundo. A menina encantada, presente desde o início, atua como fio condutor, encarnando a curiosidade e o olhar poético que transforma o cotidiano. Sua jornada pelos jardins, brincadeiras e pequenas descobertas reflete o movimento da infância como estado de plenitude e abertura. Aninha figura como personagem central, ora confundindo-se com a menina encantada, ora assumindo o papel de guia e mentora. Sua presença atravessa momentos diversos da narrativa: desde conselhos sobre como viver com atenção e presença até as brincadeiras, como o jogo da amarelinha, onde "com uma mão tocava as nuvens/com a outra pegava no chão". Aninha simboliza a ponte entre o mundo prosaico e o imaginário, capaz de converter gestos cotidianos em experiências especiais. Brubru é um personagem complexo e multifacetado, cujos poemas exploram as contradições e aprendizados do crescimento. Por um lado, surge como sábia, capaz de escolher o bem e viver com autenticidade; por outro, aparece em sua indecisão, erros e limitações. O poema "Estômago de Avestruz" expõe seu conflito interno entre preservar a menina que nunca cresce e aceitar o chamado para amadurecer. Essa tensão reflete a dinâmica da maturação, na qual aspectos infantis e adultos coexistem e se influenciam mutuamente. Fred, o grilo verde, surge como presença constante e discreta, símbolo de esperança e companhia silenciosa que auxilia a navegar pelo mundo. Sua cor sugere vitalidade e renovação, enquanto sua natureza remete à música e à persistência. Junto ao carrapato que muda de forma conforme as fases da lua, ele representa a presença transformadora da natureza no cotidiano. As "figurinhas" apresentadas nos capítulos finais formam um mosaico de personalidades e trajetórias: Verinha, que "sabia bem:/quem não se ama/não ama ninguém"; Larissa, que "não era/de ficar no pé"; Dinho, com "seu olhar/Cheio de horizontes"; Julinha, "é forte" sem "perder/a graça". Cada personagem encarna uma qualidade ou modo de relacionarse consigo e com o outro, oferecendo ao leitor um espelho para reconhecimento ou contraste. Zequinha, retratado como adulto que "já foi menino arteiro", ilustra a continuidade entre infância e maturidade, mostrando como a curiosidade infantil ("De tudo queria saber o porquê") pode converter-se em vocação adulta ("hoje, é engenheiro"). Sua história sugere que crescer não significa abandonar o espírito de descoberta, mas direcioná-lo a novos propósitos. Por fim, Maria, que "fazia salada parecer gente" e "foi para o céu:/virou um anjo", introduz a dimensão da perda e da transformação, evidenciando como a ausência física pode ser preenchida pela presença na memória e na imaginação. Sua narrativa, tratada com delicadeza, cria espaço para que a criança compreenda a morte como parte do ciclo da vida, sem dramatizações ou simplificações exageradas. Destaques O segmento dedicado aos jardins merece atenção pela forma como associa a experiência interior e exterior, sugerindo que florescer é tanto um fenômeno natural quanto um processo de autodesenvolvimento: "quanto jardim/dentro e fora/de mim". A observação cuidadosa da natureza, sobretudo dos pequenos seres e detalhes, demonstra uma postura ética diante do mundo, convidando à desaceleração e à percepção do que habitualmente escapa a um olhar apressado. O poema sobre o beija-flor destrambelhado transmite uma lição sutil a respeito da superficialidade nas relações, evidenciando como a inconstância e a falta de consistência podem conduzir ao isolamento: "Voa voa na superfície, sem/Qualquer profundeza,/Beija-flor destrambelhado/De tão falsa beleza". Essa crítica à dispersão e à dificuldade de compromisso aparece sem moralismos, como uma observação sobre consequências naturais de certos comportamentos. Os poemas dedicados a Brubru compõem um conjunto aprofundado, explorando a complexidade do crescimento e da autodescoberta. A tensão entre suas virtudes e imperfeições, entre sabedoria e dúvida, cria um retrato equilibrado que evita simplificações. O conselho do anjo para preservar a menina dentro de si, sem esquecer de crescer, sintetiza uma visão integrada do amadurecimento, que incorpora a infância em uma nova totalidade. A série das "figurinhas" oferece um panorama amplo de personalidades e atitudes, sem julgamentos simplistas de certo ou errado. Cada retrato breve captura uma essência, um modo de existir no mundo, apresentando a diversidade humana como um fato a ser observado e compreendido, não hierarquizado. Essa abordagem estimula a empatia e o reconhecimento da singularidade de cada indivíduo. Os poemas sobre lugares, como a fazendinha "perdida no tempo", evocam saudade do contato direto com a natureza e dos ritmos mais lentos de uma vida menos mediada pela tecnologia: "Para o alimento,/não precisa ir ao/mercado buscar./Tudo vem direto/da natureza". Esse contraste com o mundo contemporâneo emerge igualmente no poema "Antigamente", que confronta brincadeiras tradicionais ("Menino empinava pipa/menina rodava/bambolê") com a "realidade/virtual" atual. Por fim, o poema final, "Por que?", encerra a obra com uma série de perguntas essenciais que refletem a curiosidade incessante da infância: "Por que o céu é azul/por que a grama é verde/por que tem dia e noite/por que por que por que/Por que a gente cresce?". Essa conclusão aberta reafirma o valor do questionamento contínuo como forma de relação com o mundo, sugerindo que a verdadeira sabedoria reside não em respostas definitivas, mas na capacidade de preservar viva a indagação.

Considerações Finais A obra constrói um universo poético que valoriza a infância não como mero estágio cronológico, mas como estado de espírito marcado pela abertura, curiosidade e capacidade de admiração. Por meio de uma linguagem que combina simplicidade e densidade, os poemas convidam o leitor a redescobrir o olhar atento e encantado da criança, capaz de transformar o ordinário em singular. A narrativa estabelece conexões entre diferentes aspectos da experiência: o mundo interior e o exterior, a natureza e a cultura, a infância e a maturidade. Essa integração de polaridades sugerem uma visão abrangente do desenvolvimento humano, na qual crescer não implica renunciar à capacidade de se encantar, mas incorporá-la a uma percepção mais ampla e complexa da existência. Os personagens, com suas particularidades e trajetórias, apresentam múltiplos pontos de identificação e reflexão, permitindo a leitores variados encontrar ecos de suas próprias vivências e questionamentos. A ausência de moralismos explícitos ou lições impostas cria um espaço de liberdade interpretativa, em que cada leitor constrói significados a partir das imagens e situações propostas. A atenção ao detalhe e ao minúsculo — as joaninhas, as texturas das flores, os rastros de purpurina deixados por Marina — revela uma ética do olhar que valoriza o que costuma escapar à percepção comum. Essa disposição para perceber e valorizar o aparentemente insignificante constitui um contraponto à aceleração e à superficialidade da contemporaneidade, convidando à desaceleração e à presença plena no momento. A obra, em sua totalidade, configura-se como convite ao encantamento e à redescoberta do mundo pelos olhos da criança que fomos e que, de certa forma, permanecemos. Ao concluir com a pergunta "Por que a gente cresce?", o texto não oferece respostas fechadas, mas sugere que crescer talvez seja aprender a unir o espírito infantil de questionar e se maravilhar à experiência adulta de aceitar mistérios e cultivar a esperança mesmo diante do incerto. Nesse sentido, a narrativa retrata a infância enquanto postura existencial marcada pela curiosidade, abertura e capacidade constante de renovação do olhar.