Águia (Gabriel Lucas)
Crônica Ana Lúcia Franco
CRÔNICAQUINTA EDIÇÃO
10/18/20253 min read
Evito acordar e checar rede social como primeira atividade do dia. Mas, recentemente, fui acordada por inúmeras mensagens em todas as contas de Instagram que tenho. Devo ter deixado ligado, por descuido, o sonorizador de mensagens. Era uma pessoa com a conta @lgrabh, algo assim. Perfil fechado. Raramente leio mensagem de Instagram, mas tive que ler, eram tantas. Numa delas: “Dona Ana, até que em fim te achei”. Nossa. Dona Ana, quem me chama assim hoje em dia ? E que intimidade. Passei a seguir a pessoa.
Quando a foto dele apareceu, nítida, no feed do Instagram, foi como se uma janela se abrisse e um raio de sol iluminasse uma sala do passado, que se abriu cedendo à luz da consciência. Ali, na minha frente, novamente, aquele rapaz tímido, que chegou com o tio para fazer uma obra na minha casa, em Brasília. Bem magro, moreno, alto. Isso há quase uns vinte anos, por aí.
Mas ele estava bem mudado. Várias fotos no Instagram dele, a esposa, a filha. E ele era professor numa escola da rede pública do DF e também numa escola particular no Gama. Professor querido, prestigiado pelos alunos. Mas, professor de que? Na bio estava escrito: línguas e literatura.
O passado voltou, aquela janela aberta e a fresta. Ele entrou na minha casa com o tio para requadrar umas janelas. Passou mais de um mês. Ajudava o tio: preparava o cimento e levava num carrinho de mão. Recebia ordens aos gritos. Não respondia, cumpria.
Certa vez, o vi parado em frente à biblioteca que eu mantinha naquela casa. Lotada de livros. Ele estava na porta, seus olhos brilhavam. Está procurando alguma coisa? Eu perguntei. Ele riu e disse que gostava de ler nas horas vagas, que eram poucas. Segurava um cartão poético meu, disponível para quem quisesse na entrada da sala. Disse que também escrevia. Ah, é? Me mostre, eu disse a ele.
No dia seguinte, ele me mostrou um caderno surrado com vários poemas. Achei bom. Mas o tio não dava descanso, toda hora o chamava.
-Gostaria de ler mais livros, mas não posso comprar, ele me disse, certa vez.
-Qual o gênero? Poesia? Pois escolha um.
Mostrei a ele uma estante só com livros de poesia. E ele escolheu uma versão bem antiga e detonada do livro Eu profundo e outros eus, do Fernando Pessoa.
- Gosta de Fernando Pessoa? Pois tome este aqui.
Dei a ele uma versão capa dura da poesia completa de Fernando Pessoa. Era uma edição portuguesa, em papel seda, que nunca mais achei outra igual. Não me perguntem o porquê, nem eu sei ao certo. Eu tenho destas coisas. Eu senti que ele merecia, de alguma forma, um livro melhor. Os olhos dele brilhavam tanto. Quem não fica feliz com a felicidade alheia? Eu fico.
Pouco depois a obra em casa acabou e nunca mais nos vimos. Até nos reencontrarmos no Instagram. Não sei o que ocorreu com ele, quais os processos pelos quais ele passou para mudar de destino. Sim. Ele parecia fadado a ser ajudante do tio, de quem aprenderia o ofício de pedreiro, muito digno, isso não se contesta. Poderia mesmo ser pedreiro e ler nas horas vagas. Mas não. Era professor de literatura. E tinha um perfil fechado, discreto. Ele parecia dedicado, realmente, a seus afazeres profissionais e intelectuais, à sua família. Não era nenhuma estrela de Instagram.
-Você me concede uma reunião pelo meeting? Quero saber em detalhes o que ocorreu com você, pode ser? Eu, você e sua esposa, que tal?
-Quando a senhora quiser, Dona Ana.
Eu ri. Dona Ana? Era um traço de quem ele foi no passado. E não é mais. Agora eu que devo chamá-lo de professor. Eu não sou professora, ele é e merece o título. Estamos com um meeting marcado para amanhã. Quero saber dele, em fatos, o que pressinto: ele é uma águia. Somente o espírito de uma águia consegue se desatrelar de seus fios para se adequar a uma vida compatível com sua realidade mais nobre, digamos assim. É preciso coragem para isso. A águia é dos animais mais corajosos que há. Ele poderia se acomodar. Ele poderia repetir o tio, o pai, avô. É o que a maioria faz. Mas não. Ele mudou. Não é fácil. É um espírito raro. Um espírito águia. Quero saber dele, prestar atenção nele. Colher elementos para um conto, um romance, quem sabe.
Ele, sim, merece a minha atenção.
Imagem de Capa Jaci XIII (Flickr)