A poesia de Graça Pires

Poemas extraídos do blog Ortografia do Olhar

POEMAQUINTA EDIÇÃO

10/16/20252 min read

Mulher Com Olhos Azuis

Vou pela noite com borboletas

azuis afogadas no olhar.

Não entrevejo a lua,

nem há vultos indiscretos

assombrando o espaço à minha volta.

Parece de sombra, eu sei, este meu gesto

de segurar, com a mão direita

as bordas do vestido.

Ignoro se relembro as noites da infância,

em que evocava, no escuro, os barcos,

os piratas, as princesas, emergindo

todos do contorno das trevas

que se amontoavam nos meus olhos

até adormecer.

Não sei se procuro os avanços e recuos

de um passado em que o azul das garças

fazia nos meus olhos a secreta anunciação

do arco-íris à boca da manhã.

De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017, p.36

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Mulher com Chapéu

Não sei há quanto tempo me ardem

os olhos, quando um bando

de pássaros invade o sossego

da paisagem, como se me ofuscasse

a espessura agitada do seu voo.

Comecei a usar um chapéu de abas

largas para iludir o brilho desmedido

que desliza sobre as coisas.

Os meus olhos, é certo, já não têm

a mesma cor que tinham na infância.

Perderam a transparência e o dom

de fitar o sol sem enceguecerem.

Por isso, apenas posso olhar a lua cheia

como fazem os poetas e as bruxas.


De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017, p. 30

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Dentro de si mesma, a noite

não tem contornos:
Serve-se das sombras

para repatriar exilados afectos.
Abro as janelas, de par em par

e caminho sobre as horas,
com jogos ilícitos presos à cintura.

Um desafio exibido nas ancas.
O vértice das pernas, a sobrançar um rio,

subitamente cheio.

De Uma certa forma de errância, 2003

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É tempo de acender o fogo

No encalço de pequenas alegrias,

faço do corpo um barco.
Amarro-o nas margens do silênci

e divago, com urgência,
por dentro de um impulso incontrolado.

Tomo em meus olhos a transparência dos teus.
Quero sentir a tua noite a rondar-me o sangue,
quando dizemos: é tempo de acender o fogo.
Quero conhecer a excessiva inclinação da luz,
quando, desarmado, o coração, aguard

que aconteça aquele fascínio de garotos,

à espera da festa prometida.

De Reino da lua, 2002

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Graça Pires nasceu em Figueira da Foz, em Portugal em 22 de novembro de 1946, licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Editou o seu primeiro livro em 1990, depois de ter recebido o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores com o livro Poemas. fonte: wikipedia