A moça dos sapatinhos no metrô
Crônica de Ana Lúcia Franco
CRÔNICATERCEIRA EDIÇÃO
9/13/20253 min read
Não perco uma oportunidade de andar de metrô no Rio. Pode parar um Uber que dispenso e pego o underground carioca. A estação General Osório é encravada numa pedra subterrânea e tem uma saída no final da Rua Sá Ferreira, em Copacabana. Obra prima de engenharia. Todas as vezes que entro na estação, pergunto-me, como pode? E não tenho respostas e a pergunta volta. Maravilho-me. Entrar numa pedra é ter contato com uma forte energia telúrica; e quantos no metrô se dão conta disso?
A depender do horário, o metrô é bem cheio e parecemos sardinhas enlatadas. Não sobra centímetro de alça ou de barra para segurar. O jeito é nos segurarmos uns nos outros. Legal que o carioca costuma ser simpático. Imaginem algo assim em Paris ou Roma.
Naquele dia, na Sá Ferreira, corri para pegar o trem e o vagão, como sempre, estava lotado. Por sorte, deu para me sentar. Levantei os olhos e, na minha frente, uma figura que não parecia real: uma moça parecida com a Vênus, de Boticelli, mas com os cabelos intensamente negros e vestida à moda dos anos 20, eu acho, não sei precisar a época. A tonalidade da pele era muito clara, quase translúcida, o que é um pouco fora dos padrões cariocas. Vestia-se com um vestido com mangas bufantes e gola sobressalente. Vários botões na frente. O tecido parecia um crepe de seda ilustrado com pequenas flores. O visual era composto por um sapato em verniz tão fino, calçado com uma meia alva de barra rendada. Algo de uma delicadeza ímpar, a considerar o modo quase padronizado com que as pessoas se vestem hoje em dia.
Adoro observar as pessoas, mas para não ser indiscreta tenho um olhar que, parece, não estou olhando. Ativei este olhar, com cuidado para não desviar. O receio era desviar o olhar e a moça não estar mais lá. Podia retornar pela mesma fresta de tempo que a colocou ali naquele vagão. Parecia uma viajante do tempo deslocada de sua realidade. Melhor puxar conversa para ver se ela era real:
⁃ Posso fotografar seu sapato? É lindo
⁃ Pode sim
⁃ Escreverei uma crônica sobre você, posso?
⁃ Pode, o que é crônica?
⁃ Você gosta de ler? Crônica é um texto.
⁃ Gosto de ler, mas nunca li uma crônica.
Puxei um livro da Martha Medeiros, que sempre carrego na bolsa, e dei para ela.
- Leia quando puder, são crônicas.
⁃ A senhora está me dando?
- Ah, nada de senhora, me chamo Ana Lúcia e você? Claro que estou dando, é seu.
- Obrigada. Também me chamo Ana. Ana Virgínia.
⁃ Certo, Ana. Não ache que sou metida, mas estes sapatos, não são incômodos para usar no dia a dia? E com tantas tiras e feichos. Não é trabalhoso de colocar?
⁃ Estou acostumada.
- Usa por que está acostumada ou por que gosta de usar?
- Os dois.
⁃ Sabe que na sua idade eu adorava andar de tênis, sempre busquei comodidade. Um minuto estava calçada. Até hoje busco esta comodidade. Onde você comprou esses sapatos?
⁃ Eram da minha mãe, que ganhou da minha avó.
⁃ Ah, de geração a geração. Parecem novos
⁃ Não são novos. Uma vez por ano vão para o sapateiro que deixa eles novos.
⁃ Sapateiro? Ainda existe essa profissão? Tudo tão descartável hoje em dia.
⁃ Na Pavuna tem muito sapateiro
⁃ Você mora na Pavuna?
⁃ Moro
⁃ E sai pelas ruas da Pavuna assim?
⁃ Saio moça
⁃ Você não parece deste mundo, sabia?
⁃ Você também não, moça.
Rimos as duas viajantes do tempo, muitas vezes deslocadas, peixes contra a maré. Uma figura como Virginia é difícil encontrar. Ela pode pensar o mesmo de mim, que lhe dei um excelente livro de crônicas. Não deve acontecer todo dia com ela.
Somos duas estranhas, contra a corrente que quer a todos pasteurizar. Nos querem, todos, monocromáticos. Nos pensamentos, na maneira de vestir, de ser. Batesse um vento e nos levasse para nossos lugares. Ela para um local digno de sua figura elegantemente vestida. Eu sei lá para onde.