A Caixa Preta
Crônica de Ana Lúcia Franco
CRÔNICAQUARTA EDIÇÃO
9/21/20253 min read
Ando pelas ruas do Rio de Janeiro e é inevitável pensar que minha vida poderia ter transcorrido aqui, por quase cinco décadas, e não em Brasília. Saí da minha cidade natal ainda bebê para morar no Rio de Janeiro e ficar. Brasília foi o inusitado. Não estava nos planos, aconteceu. E Brasília era um deserto naquela época. E aquele deserto plantou algo em mim, indelével. Lá estava longe do querido e animado Rio de Janeiro e também da família maior: tios, avós, primos. Um looping de silêncio e solidão que me fez mergulhar nos livros de literatura infantil. Nos "tesouros da juventude". Nos livros da "ediouro" que chegavam mensalmente, era um clube de leitura que assinava. Não queria brinquedo, não queria roupa. Queria livros.
No Rio, morávamos no Catete e o aterro do Flamengo era o quintal. Lembro-me, perfeitamente, de caminhar pelas ruas do Catete e sentir um cheiro forte de desinfetante. “Dada, que cheiro ruim é esse?”. Eu perguntava para Bernarda, minha babá, que dizia: “Que cheiro, Aninha, não tem cheiro nenhum”.
Outro dia, caminhava por uma rua qualquer transversal da Nossa Senhora de Copacabana e senti exatamente o mesmo cheiro. Perguntei para o porteiro: “O senhor está sentindo este cheiro?”. “Sim, é o desinfetante que a prefeitura coloca nos bueiros para matar os ratos”. Ah.
Interessante como um cheiro persiste na memória e nos revisita para revelar que a criança Aninha não estava errada e, também no Catete, a prefeitura deveria colocar o desinfetante para matar ratos. Isso há quase cinco décadas. E era exatamente o mesmo cheiro.
Como teria sido minha vida por aqui, no Rio de Janeiro? Com o aterro do flamengo pertinho, numa época em que as pessoas não tinham tanto medo de estar nos parques, nas ruas. Hoje, todas as vezes que vou passear e falo para o porteiro ele me recomenda “muito cuidado”. Então tá. E ando por aí com celular. “Até o dia em que te assaltarem, viu”. Acho que o medo só atrai coisa ruim. Quanto mais medo, mais coisa ruim pode acontecer.
Brasília plantou em mim solidões irreversíveis. Seu cerrado, seu barro vermelho, o céu sem fim, que engolia a terra, se visto de longe. Crepúsculos surreais. Tudo isso que povoou minha infância e adolescência. Se tivesse me criado aqui no Rio, bem, o Rio é uma cidade pulsante, cheia de gente, de coisas para fazer. Seria diferente? Não sei. Não importa muito o lugar, talvez. Em qualquer lugar encontraria meus conteúdos. Pensando bem, não foi Brasília que me plantou solidões, mas ativou solidões seculares. Pode ser. Mudaria o cenário, alguma coisa ou outra do roteiro, mas o enredo talvez fosse o mesmo.
Embrenho-me pelo Rio. Que cidade! O centro do Rio é um espetáculo à parte e eu adoro. Muitos centros culturais, livrarias e coisas assim. Cidade às vezes linda, outras vezes muito endurecida, pesada. As pessoas estão estranhas, exaustas. Quando não, letárgicas. Já não há tanta gentileza. Tenho na memória a gentileza do carioca, da primeira vez que morei aqui. Agora, nem tanto. Copacabana, pelo menos, é um bairro meio "selva de pedra". Pessoal querendo se dar bem em cima dos outros. E não tem uma livraria, por incrível que pareça. A mais próxima está em Ipanema.
Pensar que vim começo do ano passar uns dias com minha mãe que já está idosa e mora sozinha em Copacabana e acabei ficando. E as coisas que antes me cercavam foram sumindo para que eu pudesse abrir a “caixa preta”. É um disco rígido com diversos poemas meus escritos nas mais variadas fases da vida. Coisas de que nem lembrava. Coisas que leio hoje e me pergunto: de onde tirei isso? Parecia em transe quando escrevi. E minha vida foi se modificando à medida em que abria minha “caixa preta”. Parei para me “reler”.
Daí para pensar em publicar tudo foi um pulo. Decidi abrir logo uma editora, porque é muita coisa. Imaginem pagar o que as editoras pedem? Não dá.
Quando dei por mim estava num “sabático”. Não escrevi tudo aquilo impunemente. E até final do ano, devo publicar quatro livros de minha autoria.
Apenas faça. Não há mais volta.
Imagem de capa: John William Waterhouse